segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Textos recebidos - 9

ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS 2010: EM LEILÃO, OS OVÁRIOS DAS MULHERES!
Fátima Oliveira*

“Isso aqui”, o Brasil, não é um colônia religiosa, não é um Reino e
nem um Império, é uma República! Dado o clima do segundo turno das
eleições presidenciais brasileiras, parece que as urnas vão parir uma
Rainha ou um Rei de Sabá, uma Imperatriz ou um Imperador, que tudo
pode, manda em tudo e que suas vontades e ideias, automática e
obrigatoriamente, viram lei! Não é bem assim…

Bastam dois neurônios íntegros para nos darmos conta que o macabro
leilão de ovários de todas as brasileiras, em que o aborto virou
cortina de fumaça, objetiva encobrir o discurso necessário para o povo
brasileiro do que significa, timtim por timtim, eleger Serra.

No tema do aborto a tendência mundial é, no mínimo, o aumento dos
permissivos legais, que no Brasil são dois, desde 1940: gravidez
resultante de estupro e risco de vida da gestante. Pontuando que
legalização do aborto ou o acesso a um permissivo legal existente não
significa jamais a obrigatoriedade de abortar, apenas que a cidadã que
dele necessitar não precisa fazê-lo de modo clandestino, praticando
desobediência civil e nem arriscando a sua saúde e a sua vida, cabe ao
Estado laico e democrático colocar à disposição de suas cidadãs também
os meios de acessar um procedimento médico seguro, como o abortamento.

Negá-lo, como tem feito o Brasil, que se gaba de possuir um dos
sistemas de saúde mais badalados do mundo que garante acesso universal
a TODOS os procedimentos médicos que não estão em fase de
experimentação, é imoral, pois quebra o princípio do acesso universal
do direito à saúde! Eis os
termos éticos para o debate sobre o aborto numa campanha eleitoral.

Então, o que estamos assistindo nas discussões do atual processo
eleitoral é uma disputa para ver quem é a candidatura mais CAPAZ de
desrespeitar os princípios do SUS, pasmem, em nome de Deus, num Estado
laico! Ora, quem ocupa a presidência da República pode até ser carola
de carteirinha, mas para consumo pessoal e não para impor seus valores
para o conjunto da sociedade, pois a República não é sua propriedade
privada!

Repito, não podemos esquecer que isso aqui, o Brasil, é uma República
que se pauta por valores republicanos a quem todos nós devemos
respeito, em decorrência, não custa nada dizer às candidaturas que
limitem as demonstrações exacerbadas de carolice ao campo do privado,
no recesso dos seus lares e de suas igrejas, pois não estão
concorrendo ao governo de um Estado teocrático, como parece que
acreditam. Como cidadã, sinto-me desrespeitada com tal postura.
As opções religiosas são direitos pétreos e questões do fórum íntimo
das pessoas numa democracia. Jamais o norte legislativo de uma Nação
laica, democrática e plural. Para professor uma fé e defendê-la é
preciso liberdade de religião, só possível sob a égide do Estado
laico, onde o eixo das eleições presidenciais é a escolha de quem a
maioria do povo considera mais confiável para trilhar rumo a um país
menos miserável, de bem-estar social, uma pátria-mátria para o seu
povo.

Ou há pastores/as e padres que insistem em ignorar a realidade? “Chefe
religioso” ignorante de que a sua religião necessita das liberdades
democráticas como do ar que respiramos, não merece o lugar que ocupa,
cabendo aos seus fiéis destituí-los do cargo, aí sim em nome de Deus,
amém!
O leilão de ovários em curso resulta de vigarices e pastorices
deslavadas, de má-fé e falta de escrúpulos que manipulam crenças
religiosas de gente de boa-fé para enganá-las, como a uma manada de
vaquinhas de presépio, vaquejadas por uma Madre Não Sei das Quantas,
cristã caridosa e reacionária disfarçada de santa, exemplar perfeito
de que pessoas desse naipe só a miséria gera. Num mundo sem miséria,
madres lobas em pele de cordeiro são desnecessárias e dispensáveis. É
pra lá que queremos ir e o leilão de ovários quer impedir!

Quem porta uma gota de lucidez tem o dever, moral e político, de não
permitir que a escória fundamentalista de qualquer religião, que faz
da religião um balcão de negociatas que vende Deus, pratica pedofilia
e fica impune e ainda tem a cara de pau de defender a impunidade para
pedófilos e os acoberta desde os tempos mais remotos, nos engabele e
ande por aí com uma bandeja de ovários transformando a escolha de quem
presidirá a República num plebiscito pra definir quem tem mais mão de
ferro pra mandar mais no território do corpo feminino!

Cadê a moral dessa gente desregrada para querer ditar normas de
comportamento segundo a sua fé religiosa para o conjunto da sociedade,
como se o Brasil fosse a sua “comunidade religiosa”? Ora, qualquer
denominação religiosa em terras brasileiras está também obrigada ao
cumprimento das leis nacionais, ou não? Logo o que certas
multinacionais da religião fizeram no processo eleitoral 2010 tem
nome, chama-se ingerência estrangeira na soberania nacional. E vamos
permitir sem dar um pio?
Diante dessa juquira (brotação da mata pós-desmatamento), onde só
medrou urtiga e cansanção, cito Brizola, que estava coberto de razão
quando disse: “O Brasil é um país sem sorte”, pois em pleno Século 21
conta com candidaturas presidenciais (não sobra uma, minha gente!)
reféns dos setores mais arcaicos e feudais de algumas religiões
mercantilistas de Deus.

É hora de dar um trato ecológico na juquira que empana os ideais e
princípios republicanos, fora dos ditames da “moderna” agenda verde
financeira neoliberal da “nova política”, que no Brasil é infectada de
carcomidas figuras, que bem sabemos de onde vieram e pra onde vão, se
o sonho é fazer do Brasil um jardim de cidadania, similar ao que
Cecília Meireles tão lindamente poetou.

“Quem me compra um jardim com flores?/ borboletas de muitas cores,/
lavadeiras e passarinhos,/ ovos verdes e azuis nos ninhos?/ Quem me
compra este caracol?/ Quem me compra um raio de sol?/ Um lagarto entre
o muro e a hera,/ uma estátua da Primavera?/ Quem me compra este
formigueiro?/ E este sapo, que é jardineiro?/ E a cigarra e a sua
canção?/ E o grilinho dentro do chão?/ (Este é meu leilão!)” [Leilão
de Jardim, Cecília Meireles].

Em 2010 em nosso país o que está em jogo é também a luta por uma
democracia que se guie pela deferência à liberdade reprodutiva e que
considere a maternidade voluntária um valor moral, político e ético,
logo respeita e apoia as decisões reprodutivas das mulheres,
independente da fé que professam. Nada a ver com a escolha de quem vai
mandar mais no território dos corpos das mulheres! Então, xô, tirem as
mãos dos nossos ovários!

E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br

* Fátima Oliveira é médica e escritora. Feminista. Integra o Conselho
Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e o Conselho
Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe
(RSMLAC). Escreve uma coluna semanal no jornal O Tempo (BH, MG), desde
3 de abril de 2002. Uma das 52 brasileiras indicadas ao Nobel da Paz
2005, pelo projeto 1000 Mulheres para o Nobel da Paz 2005. Autora dos
seguintes livros de divulgação e popularização da ciência: Engenharia
genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995 – 14a. impressão,
atualizada em 2004); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997 –
8a. impressão atualizada, 2004); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza
Edições, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de
escolher (Mazza Edições, 2000); O estado da arte da Reprodução Humana
Assistida em 2002 e Clonagem e manipulação genética humana: mitos,
realidade, perspectivas e delírios (CNDM/MJ, 2002); Saúde da população
Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002). Autora dos seguintes romances: A
hora do Angelus (Mazza Edições, 2005); Reencontros na travessia: a
tradição das carpideiras (Mazza Edições, 2008); e Então, deixa chover
(no prelo).

Belo Horizonte, 07 de outubro de 2010.

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